O Feminino e o Sagrado um jeito de olhar o mundo

A menina roda-moinho: Rosane Almeida

Fiz esses contos com intenção de “traduzir” para a linguagem mitológica alguns aspectos da vida real da mulher entrevistada no nosso livro O feminino e o sagrado: mulheres na jornada do herói.
Então, para esclarecer os que ainda não leram o livro e relembrar a quem leu, antes do conto há um pouco da biografia da pessoa a quem se refere.


A entrevista com Rosane foi feita na sala de espetáculo do Teatro Brincante, na Vila Madalena. Ela é uma mulher miúda, que num primeiro momento parece quase tímida, diferente da força vital que aparece quando está atuando no palco. Mas, quando se solta, é muito engraçada.
Rosane Almeida lançou-se em sua jornada precocemente, até que, aos 17 anos, conheceu Antonio Nóbrega. A partir daí a jornada tornou‑se conjunta, na expressão de uma arte que inclui o rico repertório de danças e musicas tradicionais dos Mestres Brincantes, antes quase esquecidos por aqui.
No palco, Rosane atua, dança, faz malabares e outras artes circenses. Um dia, ela sentiu necessidade de um trabalho solo e, dessa jornada dentro da jornada, surgiu a peça
A mais bela historia de Adeodata.

Um grupo de mestres-artistas estava reunido. Eles eram pobres, velhos, tocavam uns instrumentos esquisitos, cantavam musicas antigas, dançavam em roda, e se vestiam de um jeito extravagante, com chapéus coloridos ou saias.
Eram tão diferentes do comum, que ninguém mais queria saber deles.

Por isso, esses artistas estavam ficando invisíveis – como todo o mundo sabe, artista de palco só vive, mesmo, quando tem alguém olhando. Como esses não tinham, os pretos estavam ficando mulatos, os mulatos brancos, e os brancos transparentes. As vozes estavam virando fiozinhos de voz, e as cores das roupas pareciam lavadas com sabão ruim.

Então, um dia, um deles falou:
– Nós vamos sumir, e nossa arte também vai.
O mais velho respondeu:
– Então vamos fazer um ultimo espetáculo. Vamos tocar, cantar e dançar com toda força. Nem que com isso a gente se gaste tudinho, e desapareça de vez, vai valer a pena.
Assim fizeram. Apertaram os olhinhos e as rabecas, e formaram sua ultima roda.

De repente, no centro da roda se formou um rodamoinho. Quando ele parou de girar, deixou ali duas crianças.
Era um casalzinho, os dois espertos que nem o demo. Coloridíssimos, rapidíssimos, estavam tão cheios de energia nova que os velhos babaram de gosto só de olhar para eles.
E eles também gostaram de olhar para os velhos, porque viram que eles eram tesouros que vinham de longe e que iriam para longe, ricos que nem mangueiras que têm raízes fundas, grossos troncos, e galhos que atingem o céu, fartos de mangas doces.

As duas crianças aprenderam os folguedos e abriram a roda.
Lá dentro, meteram teatros de cidades grandes, programas de televisão, uma escola que ensinava essas artes, e até fizeram as danças entrarem na moda.
O menino virou um homem-mestre-artista.
A menina virou uma mulher-mestra-artista-grávida.

Ela demorou em notar a barriga, sapeca que é, que não pára de dançar, de se arriscar e de brincar. Só reparou na ultima hora, quando o filho já estava nascendo.
Todo o mundo correu para ver a criança – mas o que ela pariu foi outro rodamoinho.
Quando o troço parou de girar, lá deixou outra roda, pequenininha, mas com jeito de que ia ficar enorme.Essa rodinha só tinha mulheres, velhas e novas, engraçadas e bravas, cheias de casos para contar.
A menina correu para o centro, e cantou sua musica sozinha.

Hoje, a roda das mestras-mestres-artistas está enorme, e tem muitos rodamoinhos girando, cheios sei lá do que.
Só sei que não é de pouca coisa, não.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.