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GIREI ESSE TEMPO TODO, por Marcos Dávila

Texto de  MARCOS D’AVILA

Nessa reportagem, publicada dia 3/10 no Caderno Equilíbrio da Folha de São Paulo, Marcos descreve um fim de semana passado num retiro para aprender o giro sufi.
Eu também estava lá, e foi uma experiência inesquecível.

Itálico

Quer sair rodando sem parar e sem sentir tontura? Siga a aventura da reportagem, que encarou três dias silenciosos de retiro para participar de uma iniciação à dança sufi

MARCOS DÁVILA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quando criança, a terapeuta corporal Denise Scótolo sempre sonhava que estava girando. Foi revisitada pelo sonho. “Dessa vez, não conseguia parar”, conta, enquanto dirige pela rodovia Dom Pedro 1º.
Completam a tripulação a arquiteta Beatriz Del Picchia e um jornalista curioso. O grupo acaba de se conhecer e vai a Nazaré Paulista (a 100 km de SP) participar de uma iniciação à dança sufi mevlevi.
O retiro de três dias acontece no espaço Rosa de Nazaré. O objetivo do lugar é o ensino e a prática do secular giro sufi, oração em movimento concebida por Mevlana Jalaluddin Rumi (1207-1273).
Meu conhecimento sobre isso se resumia à imagem dos sufis dançando no documentário “Baraka”, de Ron Fricke. A curiosidade era grande.
Chegamos no fim da tarde. O lugar, no alto de um vale, é simples e acolhedor, como um mosteiro. Homens dormem em quartos separados das mulheres e todos lavam seus pratos no refeitório, onde carne e álcool não entram.

SILÊNCIO
As palavras são evitadas, o silêncio é premissa da prática. Um gongo anuncia o despertar, as refeições, as atividades. Não há sinal de celulares. Ali, a conexão é outra.
O grupo se reúne em roda, na sala octogonal com chão de madeira, construída para o ensino e o ritual -que vem do sufismo, vertente mística do islamismo. A despeito disso, toda pessoa pode girar, não importa o credo.
Mas fica claro que a dança é devocional e exige disciplina. A ideia é entrar em contato com o divino por meio do desprendimento do ego.
Entoamos o mantra “zikr” (significa lembrança de Deus), e as facilitadoras Marta de Freitas e Irene Gonçalves nos ensinam a posição base, o casulo: braços cruzados sobre o peito e mãos nos ombros; cabeça inclinada à direita; rosto virado à esquerda e dedão do pé direito sobre dedão do esquerdo. Assim ficamos logo que entramos na sala, após reverência à Meca.
No dia seguinte, o grupo se reencontra na sala do giro. Antes, é preciso passar pelas abluções: as lavagens dos pés que acontecem várias vezes ao dia.
Dentro, cada um escolhe um lugar para ficar. Mais uma reverência, e começa o giro.
A torção do corpo começa pela cabeça, da direita para a esquerda, no sentido anti-horário. Os pés ficam firmes, especialmente o esquerdo, que sustenta o eixo. As pernas se cruzam até que o joelho direito fique atrás do esquerdo. Nisso, sem tirar a sola do chão, o pé direito desliza à frente do esquerdo, dando sequência à segunda metade da circunferência.
É mais complicado explicar do que fazer o movimento. Difícil é manter fluência no giro, sem sair do lugar.
As facilitadoras jogam talco ao redor dos praticantes para ajudar no deslizamento. Os pés vão desenhando círculo brancos no piso. De tempos em tempos, uma delas recita um poema de Rumi.
Giramos no silêncio. Abraçados a si mesmos, rodando no salão quieto, parecemos dançarinos sem par. Depois, o som de flauta nos ajuda a manter o foco. O primeiro giro dura 20 minutos. A surpresa é rodar tanto sem sentir tontura.

CASULO
À tarde, passamos pelo ritual de “purificação do eixo”. Cada um gira sobre um painel de madeira com um pino no centro sobre o qual é derramado sal, e ali se encaixa o vão entre o dedão e os outros dedos do pé esquerdo. O sal simboliza purificação.
“Girei mesmo foi em torno de uma poça do meu suor. É um exercício forte”, diz a arquiteta Beatriz Del Picchia. A terapeuta Denise Scótolo concorda: “Achei que seria fácil. É difícil, mas prazeroso”.
Depois, há a cerimônia do semâ. Vestidas com saias e chapéus típicos, as mulheres giram em torno do próprio eixo e também traçam uma circunferência pela sala. Os chapéus simbolizam a lápide, o manto, a tumba. Descoberto o manto, giram um tempo como casulos. Logo os braços se abrem: é a transformação da lagarta em borboleta.
“O principal é virar borboleta. É uma viagem simbólica, do conhecido para o desconhecido. E na volta, temos um ser humano transformado”, explica Maria Rosa de Freitas Alloni, criadora do espaço.
No último dia, os exercícios ficam mais complexos. Tiramos o pé direito do chão no giro, o que dá mais fluência e velocidade, e coordenamos a respiração com as voltas. Somente nos dois giros finais do retiro saímos do casulo.
No meio do giro, as facilitadoras nos entregam um bastão. É preciso beijá-lo e erguê-lo sobre a cabeça sem parar de girar. Deve-se sustentar o bastão no alto até que alguém volte para buscá-lo. Depois de um tempo girando com os braços levantados, qualquer minuto vira uma eternidade. Primeiro, giramos no silêncio. Abraçados a si mesmos, rodando no salão quieto, parecemos dançarinos sem par.

“Suportar essa tensão entre dispersão e recolhimento, doação e controle, dinâmica e estática me levou a momentos tão críticos que acreditei morrer três mortes”. É o que conta o bailarino alemão Bernhard Wosien (1908-1986) no livro “Os Sufis e a Oração em Movimento” (editora Trion), escrito por sua filha, a bailarina Maria Gabriele Wosien.
Maria Gabriele estará no Brasil nos dias 21, 22 e 23 deste mês para outro retiro de iniciação ao giro sufi no espaço Rosa de Nazaré (www.rosadenazare.org.br), criado pela psicóloga Maria Rosa de Freitas Alloni e o marido, o engenheiro e chef de cozinha Dino Alloni.
Também virá ao encontro Esin Çelebi Bayru, neta de Rumi pela 22ª geração e descendente, pelo ramo direto, dos filhos de Rumi e fundadores da ordem mevlevi (mevlevi vem de “mevlana”, que significa nosso mestre).
Foi Maria Gabriele quem apresentou Maria Rosa e Dino à família descendente de Rumi, na Turquia, onde eles conheceram a tradição.
Segundo Maria Rosa, o giro altera o estado de consciência. “Estamos inseridos no tempo e espaço linear. O objetivo de girar é perceber outro espaço, circular e atemporal, fora do eu. O giro te faz entrar num estado de quietude e presença.”
A ideia é encontrar o centro. Não só o individual, mas o centro do grupo. “Girar em grupo é mais fácil do que girar sozinho”, diz Rosa.

1 comentário

  1. Anônimo disse:

    Tambem tive uma experiencia destas……eh incrivel!!!!!!…..

    Heloisa Paternostro.

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