O Feminino e o Sagrado um jeito de olhar o mundo

O Feminismo no Brasil – parte 2

Continuando a história de Feminismo no Brasil, a partir de uma artigo da professora e escritora Constância Lima Duarte.

Primeira onda: as primeiras letras

Quando começa o século XIX, as mulheres brasileiras, em sua grande maioria, viviam enclausuradas em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural. Urgia levantar a primeira bandeira, que não podia ser outra senão o direito básico de aprender a ler e a escrever (então reservado ao sexo masculino). A primeira legislação autorizando a abertura de escolas públicas femininas data de 1827, e até então as opções eram uns poucos conventos, que guardavam as meninas para o casamento, raras escolas particulares nas casas das professoras, ou o ensino individualizado, todos se ocupando apenas com as prendas domésticas. E foram aquelas primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma educação diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais companheiras, e abriram escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler nem escrever. Concordo com Zahidé Muzart quando afirma que:

• […] no século XIX, as mulheres que escreveram, que desejaram viver da pena, que desejaram ter uma profissão de escritoras, eram feministas, pois só o desejo de sair do fechamento doméstico já indicava uma cabeça pensante e um desejo de subversão. E eram ligadas à literatura. Então, na origem, a literatura feminina no Brasil esteve ligada sempre a um feminismo incipiente.

O nome que se destaca nesse momento é o de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), nascida no Rio Grande do Norte, que residiu em Recife, Porto Alegre e Rio de Janeiro, antes de se mudar para a Europa, e que teria sido uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar textos em jornais da chamada “grande” imprensa. Seu primeiro livro, intitulado Direitos das mulheres e injustiça dos homens, de 1832, é também o primeiro no Brasil a tratar do direito das mulheres à instrução e ao trabalho, e a exigir que elas fossem consideradas inteligentes e merecedoras de respeito. Este livro, inspirado principalmente em Mary Wollstonecraft (Nísia declarou ter feito uma “tradução livre” de Vindications of the Rights of Woman), mas também nos escritos de Poulain de la Barre, de Sophie, e nos famosos artigos da “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, de Olympe de Gouges, deve, ainda assim, ser considerado o texto fundante do feminismo brasileiro, pois se trata de uma nova escritura ainda que inspirado na leitura de outros. Pode também ser lido como uma resposta brasileira ao texto inglês: nossa autora se colocando em pé de igualdade com a Wollstonecraft e o pensamento europeu, e cumprindo o importante papel de elo entre as idéias estrangeiras e a realidade nacional.
Nísia Floresta identifica na herança cultural portuguesa a origem do preconceito no Brasil e ridiculariza a idéia dominante da superioridade masculina. Homens e mulheres, afirma, “são diferentes no corpo, mas isto não significa diferenças na alma”. Ou as desigualdades que resultam em inferioridade “vêm da educação e circunstâncias de vida”, argumenta, antecipando a noção de gênero como uma construção sociocultural. Segundo a autora, os homens se beneficiavam com a opressão feminina, e somente o acesso à educação permitiria às mulheres tomarem consciência de sua condição inferiorizada.
Apenas em meados do século XIX começam a surgir os primeiros jornais dirigidos por mulheres. Os críticos chegam junto, considerando-a desde sempre uma imprensa secundária, inconsistente e supérflua, pois destinava-se ao segundo sexo… Mas, ainda assim, veremos o quanto aquelas páginas artesanais lograram avançar em direção à construção da identidade feminina. Em 1852, o público leitor do Rio de Janeiro deve ter se surpreendido com o lançamento do Jornal das senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha, uma argentina radicada no Rio de Janeiro. O editorial do primeiro número expõe o firme propósito de incentivar as mulheres a se ilustrarem e a buscarem um “melhoramento social e a emancipação moral”. Joana Manso acreditava na inteligência feminina e queria convencer a todos que “Deus deu à mulher uma alma e a fez igual ao homem e sua companheira”. Para ela, a elite brasileira não podia ficar isolada “quando o mundo inteiro marcha ao progresso” e “tende ao aperfeiçoamento moral e material da sociedade”. Como Nísia Floresta, Joana Manso também acusava os homens de egoísmo por considerarem suas mulheres apenas como “crianças mimadas”, ou “sua propriedade”, ou “bonecas” disponíveis ao prazer masculino. O pioneirismo d”O jornal das senhoras, e suas colaboradoras tímidas e anônimas, representaram, ainda assim, um decisivo passo na longa trajetória das mulheres em direção à superação de seus receios e conscientização de direitos.
Outra escritora importante foi Júlia de Albuquerque Sandy Aguiar, editora de O belo sexo, publicado no Rio de Janeiro, em 1862. No primeiro número ela declara estar consciente do pioneirismo de sua iniciativa e sua crença inabalável na capacidade intelectual da mulher. A novidade deste periódico é que as colaboradoras eram incentivadas a assinar seus trabalhos e participavam efetivamente do jornal, discutindo entre si os temas a serem publicados.

PS: A autora do texto, Constancia Lima Duarte, gentilmente corrigiu um erro nesse texto que foi o uso da foto dita da Nísia Floresta e que realmente é de outra escritora Isabel Gondim, tambem do Rio Grande do Norte. A foto foi trocada em 21 de julho de 2020.

2 comentários

  1. CONSTANCIA LIMA DUARTE disse:

    Olá, vi agora esta transcrição de um texto meu na sua pagina O feminino e o Sagrado.
    Aproveito para dizer que a fotografia que pretende ilustrar Nisia Floresta, nao é a dela, mas de outra escritora chamada Isabel Gondim, tambem do Rio Grande do Norte.
    Como este problema de confundir as duas imagens se arrasta há muito tempo, peço que me ajude a desmanchar o equivoco.
    Muito grata,
    Constancia Lima Duarte

    1. crisbalieiro disse:

      Oi Constancia a foto já foi trocada no post, com o aviso do erro. Obrigada ppelo aviso e por seu texto tão importante sobre a história do feminismo no Brasil.
      Abraço
      Cristina

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