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Os mortos vivem nos sonhos de Jung

Estava interessada em conhecer a necrópole de Alyscamps (em Arles, sul da França)  porque sabia de um sonho de Jung que se passava lá, mas nunca tinha visto nenhuma foto ou imagem do local. Antes de ir, eu mesma sonhei que atravessava um portal em arco que separava o mundo de cá do mundo de lá, que nesse sonho era meio desértico.

Alyscamps foi criado pelos romanos para sepultar soldados mortos nas batalhas. Seus sarcófagos de pedra ainda estão lá, abertos e com a laje que os cobria ao lado, dando a impressão de que Lázaro acabou de levantar dali. Com o advento do cristianismo seguiu como cemitério e foram construídas capelas, depois virou um mosteiro, agora é museu a céu aberto, patrimônio mundial da UNESCO.  Vincent Van Gogh e Paul Gaugin  gostavam da atmosfera de Alyscamps, onde pintaram muitas obras.  
 

Não tinha quase ninguém no dia em que visitei esse lugar meio desértico mesmo, coberto por fina camada de pedriscos brancos de onde emergem grandes arvores. As tumbas formam fileiras em torno de uma alameda central, que percorri até chegar – sim, num arco, portal de uma construção maior. Passei sob ele, já meio assustada ou assombrada, não sei. 
Depois daquele vieram outros arcos, num caminho sempre ladeado por tumbas que acabou dando numa igreja vazia, meio em ruínas. Como está em parte descoberta, abriga centenas de pombas que de repente surgiam de alguma escura fresta batendo asas, arrulhando surdamente e fazendo barulhos que, acredite, faz você se arrepiar e pensar em gemidos de almas do outro mundo. Se há portais para lá, esse é um deles, brr…
Aguentei firme e sozinha até que uma passou a centímetros da minha cabeça, que baixei a tempo porém resolvendo sair depressa do que estava ameaçando virar também o filme Os pássaros do Hitchcock, que alias deveria ter filmado ali. 
Cruzei uma cortina  (não imagino por que, mas adequadamente, feita de correntes) e voltei para o lado de cá, onde pretendo ficar mais um bom tempo, espero.  

Abaixo, parte do impressionante sonho do Jung, que está em seu livro Memórias, sonhos, reflexões: 

Eu estava em uma região, que me fez lembrava os Alyscamps, perto de Arles. Lá existe uma alameda de sarcófagos, que vem do tempo dos merovíngios. No sonho, eu vinha da cidade e via a minha frente uma alameda semelhante, orlada de fileira de túmulos (…) Sobre lajes de pedra estavam os mortos. Em meu sonho os mortos não eram de pedra mas, de modo singular, mumificados. Parei na frente do primeiro túmulo e observei o morto. Era um personagem dos anos 1830. Interessado, olhei suas roupas. De repente ele começou a mover-se e voltou à vida (…). 

Aproximei-me de outro morto, que pertencia ao sec. XVIII (..) Enquanto olhava, ele voltou à vida e mexeu as mãos. Percorri toda fileira, até chegar ao sec XII. O morto era um Cruzado que repousava numa cota de malha, de mãos postas. Seu corpo parecia talhado na madeira. Contemplei-o longamente, convencido de que estava realmente morto. Subitamente, porém, vi que um dos dedos de sua mão esquerda começava, pouco a pouco, a se animar.”

 texto e fotos de Beatriz Del Picchia

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