O Feminino e o Sagrado um jeito de olhar o mundo

Viva a incansável Gloria! – por Raphaela de Campos Mello

Texto da querida amiga Raphaela de Campos Mello, jornalista pós-graduada em jornalismo cultural pela PUC-SP. Tem um blog de crônicas (farelosaochao.wordpress.com) e desde 2015 integra um círculo de mulheres (mulheresemcirculo-luz.blogspot.com), dedicado ao estudo do feminino com base na psicologia junguiana, na mitologia e na obra de autoras como Clarissa Pínkola Estés, Jean Shinoda Bolen e Marion Woodman.

Hoje, 25 de março, Gloria Steinem completa 85 anos. Um dos nomes mais importantes do movimento feminista está vivo, ativo e cheio de planos. Descobri essa mulher notável muito recentemente, graças a dois de seus livros: A Revolução Interior – Um Livro de Autoestima (Editora Objetiva, 1992) e Minha Vida na Estrada (Bertrand Brasil, 2017). Desde então, ganhei mais do que um exemplo; uma perspectiva para minha própria vida e para o futuro da humanidade.
Jornalista, ativista, palestrante e organizadora, nascida em Ohio, Estados Unidos, Gloria não teve filhos. Muito nova, cuidou da mãe depressiva. Foi o suficiente. Escolheu dedicar suas melhores energias a si mesma, ao próprio caminho. E que caminho! Em 2013, ela recebeu do então presidente Barack Obama a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta honraria civil do país. Com 79 anos, na época, poderia ter se dado por satisfeita. Não mesmo. Até hoje mantém os olhos à frente, vislumbrando ações que gerem mudanças palpáveis mundo afora.
Gloria é um ser da estrada, dos encontros, das culturas, das diferenças. Viajou o globo apoiando causas dignas da atenção de governantes, empresários, meios de comunicação e filantropos (por mais de quatro décadas, passou pelo menos metade do tempo se deslocando). Sua missão sempre foi articular ideias, reunir argumentos e mobilizar pessoas em prol dos direitos de mulheres, negros, indígenas, homossexuais, transsexuais, transgêneros, trabalhadores urbanos e rurais e em defesa do meio ambiente.
Nos anos 1950 e 1960, o movimento feminista ganhava corpo e sua juventude pôde ter outros desdobramentos para além do script padrão. Aos 22 anos de idade, logo após terminar a faculdade, desmanchou um noivado com um homem “bom, mas errado”, realizou um aborto (fazendo valer uma bandeira crucial para a luta que encampou: a liberdade da mulher em relação ao próprio corpo e às suas escolhas) e foi viver dois anos na Índia com uma bolsa de estudos.
Suas andanças pelas vilas indianas lhe apresentaram a força dos círculos de mulheres, a riqueza de suas trocas e partilhas, num espaço onde tanto a fala quanto a escuta são valorizadas. Esse foi o modelo que Gloria seguiu em sua caminhada de “militante feminista itinerante”, como gosta de se definir. “Se eu tivesse que apontar a descoberta mais importante da minha vida, seria a comunidade portátil dos círculos de conversa; grupos que se reúnem com todos os cinco sentidos e permitem uma mudança de consciência”, ela conta em Minha Vida na Estrada.
Gloria não acredita na eficácia de pirâmides hierárquicas e sim na potência harmônica dos círculos ancestrais. A transformação de que o mundo tanto necessita virá da colaboração e não da competição, ela sustenta há décadas. Ao lutar contra as barreiras raciais e sexuais ela também está acordando nossa memória, como se soprasse com sua voz serena: “Ei, houve um tempo em que os seres humanos viviam num sistema colaborativo, equilibrado e saudável. Vamos resgatar esses valores antes que seja tarde?”.

Legado ancestral

Após a imersão na Índia, bastante influenciada pelo legado de Mahatma Gandhi e pela prática de seus seguidores – gente que dependia da generosidade e, por isso, criava generosidade – a ativista regressou ao seu país disposta a reaver algo que lhe fora negado: a história e a cultura das nações nativas norte-americanas, povos que gozavam de igualdade e abundância.
Durante as inúmeras conferências e protestos dos quais participou nos anos 1960 e 1970, a defensora dos direitos humanos conviveu com mulheres e homens do Território Indígena. Cidadãos que lutavam para que o passado dos seus povos não fosse solapado pelo avanço capitalista, desde sempre interessado nas riquezas naturais dessas terras. Os descendentes dos primeiros habitantes da América foram aos poucos ensinando à jornalista suas concepções de mundo e suas formas de organização cotidiana. “Comecei a perceber que grande parte do nosso problema é a simples ignorância a respeito do que as culturas mais antigas têm para ensinar”, reconhece.
Ela descobriu, por exemplo, que nessas sociedades os papéis masculino e feminino eram flexíveis e igualmente reconhecidos. Um não era mais importante do que o outro. Todos contribuíam a seu modo para o bem do coletivo. Algumas línguas nativas sequer possuíam pronomes de gênero como ele e ela. Além disso, as mulheres podiam decidir quando e se queriam ter filhos, o consenso estava no cerne da gestão comunitária e a força Criadora se manifestava igualmente em todas as coisas vivas. Em suma, eles geraram um paradigma que propiciava união e, consequentemente, plenitude. De repente, Gloria passou a enxergar a possibilidade de um mundo acolhedor e desenvolveu uma nova fé: “As coisas podem voltar a ser como foram um dia – de uma nova forma”.
Em nome desse sonho, ela segue em frente. Diz que viverá até os cem anos. E sorri. Gosta da vida. Tem um corpo esguio e enérgico. Suas cinzas, contudo, já têm um lugar de repouso. Às margens da nascente que viceja na propriedade da amiga e parceira de luta Wilma Pearl Mankiller (1945-2010), a primeira mulher a ser eleita chefe principal da Nação Cheroqui nos tempos modernos. Por meio do trabalho de base da colega empoderando grupos desfavorecidos, Gloria entendeu o poder da comunidade. E também a beleza da vida. Com Wilma, que mais parecia uma “árvore robusta e atemporal’, ela aprendeu que “todo dia é um bom dia, porque somos parte de todas as coisas vivas”.

Mais informações: www.gloriasteinem.com
Facebook.com/GloriaSteinem
@GloriaSteinem

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