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Jorge Luis Borges sobre a cegueira e o Dia do Trabalho

Borges Sete noites

Parece que não tem nada a ver a cegueira de Borges e o dia do Trabalho? Mas tem algo que une os dois assuntos. Primeiro, imagine um escritor, diretor de uma grande biblioteca e apaixonado por livros que fica cego. Uma desgraça, pode-se pensar. Mas o grande autor argentino Jorge Luis Borges não viu assim e transformou isso em material para sua arte, afirmando que “essas coisas nos foram dadas para que possamos transmuta-las”.

Há quem ache ser otimismo dele ver um sentido nisso, mas penso da mesma forma e é nesse sentido que estendo a ideia para a comemoração de hoje, o Dia do Trabalho. Acontece que  nós mulheres temos pouco a celebrar porque ainda estamos longe de ter igualdade nas oportunidades e condições de trabalho. Mas – aí que está a ligação – creio que com a luta de cada uma e de todas juntas, com sororidade, determinação e esse tipo de atitude otimista podemos ver sentido em fazer a parte que nos cabe para mudar isso. 

Voltando a Borges, aconteceu que ele ficou parcialmente cego de um olho e totalmente cego de outro na mesma época que foi nomeado Diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, como relata nesses trechos inspiradores que selecionei de uma das palestras que estão em seu livro Sete Noites:

“Recebi a nomeação de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina no final de 1955. Assumi, perguntei a quantidade de volumes, me disseram que era um milhão. Descobri depois que eram novecentos mil, número mais do que suficiente. (Talvez 900.000 pareça mais do que um milhão:  900.000 ; em vez disso, um milhão se esgota rapidamente). (…)
Aos poucos comecei a entender a estranha ironia dos fatos. Sempre imaginei o Paraíso sob a forma de uma biblioteca. Outras pessoas pensam em um jardim, outras podem pensar em um palácio. Lá estava eu. Era, de certa forma, o centro de novecentos mil volumes em várias línguas. Descobri que mal conseguia decifrar as capas e lombadas. Assim escrevi o “Poema dos dons”, que começa assim:
“Ninguém reduza às lágrimas ou reprovação
esta declaração da maestria
de Deus que com magnífica ironia
me deu os livros e a noite ao mesmo tempo”.
Esses dois dons que se contradizem: os muitos livros e a noite, a incapacidade de lê-los.
Disse a mim mesmo: já que perdi o querido mundo das aparências, devo criar outra coisa: devo criar o futuro, o que acontece com o mundo visível que, de fato, perdi. Lembrei de alguns livros que estavam em casa. Eu era professor de literatura inglesa em nossa universidade. O que ele poderia fazer para ensinar aquela literatura quase infinita, aquela literatura que sem dúvida ultrapassa o prazo da vida ou das gerações de um homem? O que ele poderia fazer em quatro meses argentinos de datas e greves nacionais? (…)
Pensei: perdi o mundo visível mas agora vou recuperar outro, o mundo dos meus ancestrais distantes, dessas tribos, desses homens que remaram pelos mares tempestuosos do Norte e que da Dinamarca, da Alemanha e da Holanda conquistou a Inglaterra.; que é chamada por eles de Inglaterra, já que “Engaland”, terra dos anglos, antigamente era chamada de “terra dos bretões”, que eram celtas. (…)
Assim começou o estudo do anglo-saxão, ao qual a cegueira me conduziu. E agora minha memória está cheia de versos elegíacos, épicos, anglo-saxões. Havia substituído o mundo visível pelo mundo auditivo da língua anglo-saxônica. Depois fui para aquele outro mundo, mais rico e tardio, da literatura escandinava: fui aos eddas e às sagas. Depois escrevi  Literaturas Germânicas Antigas , escrevi muitos poemas baseados nesses temas e, acima de tudo, gostei dessas literaturas. E agora tenho um livro sobre literatura escandinava em preparação.
Não permiti que a cegueira me acovardasse. Além disso, meu editor me deu uma excelente notícia: ele me disse que se eu lhe desse trinta poemas por ano, ele poderia publicar um livro. Trinta poemas significam uma disciplina, especialmente quando é preciso ditar cada linha; mas, ao mesmo tempo, bastante liberdade, já que é impossível que trinta ocasiões de poesia não aconteçam a uma em um ano.
A cegueira não tem sido uma desgraça total para mim, não deve ser vista de forma patética. Deve ser visto como um modo de vida: é um dos estilos de vida dos homens.
Um escritor, ou todo homem, deve pensar que o que lhe acontece é um instrumento; todas as coisas lhe foram dadas com um propósito e isso tem que ser mais forte no caso de um artista. Tudo o que lhe acontece, até as humilhações, os embaraços, as desventuras, tudo isso lhe foi dado como barro, como matéria para a sua arte; você tem que aproveitá-lo. Por isso falei num poema do antigo alimento dos heróis: humilhação, infortúnio, discórdia. Essas coisas nos foram dadas para que possamos transmutá-las, para que possamos tornar as circunstâncias miseráveis ​​de nossas vidas coisas eternas ou aspirar a ser.
Se o cego pensa assim, ele está salvo. A cegueira é um dom. Já vos esgotei com os dons que ele me deu: deu-me o anglo-saxão, deu-me parcialmente o escandinavo, deu-me o conhecimento de uma literatura medieval que eu desconhecia, deu-me o facto de tendo escrito vários livros, bons ou ruins, mas que Justificam quando foram escritos. Além disso, o cego se sente cercado pelo carinho de todos. As pessoas sempre sentem boa vontade por um cego.
Quero concluir com um verso de Goethe. Meu alemão é deficiente, mas acho que posso recuperar essas palavras sem muitos erros:  “Alles Nahe werde fern” , “tudo perto se afasta”. Goethe escreveu referindo-se ao crepúsculo da noite. Tudo que está perto se afasta, é verdade. Ao entardecer, as coisas mais próximas já se afastam de nossos olhos, assim como o mundo visível se afastou de meus olhos, talvez para sempre.
Goethe podia se referir não apenas ao crepúsculo, mas também à vida. Todas as coisas estão nos deixando. A velhice deve ser a suprema solidão, exceto que a suprema solidão é a morte. Também “tudo que está perto se afasta” refere-se ao lento processo de cegueira, sobre o qual eu queria falar esta noite e queria mostrar que não é uma desgraça total. Que deve ser mais um instrumento entre tantos, tão estranhos, que o destino ou o acaso nos reservam.

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