O Feminino e o Sagrado um jeito de olhar o mundo

As viajantes que dançam


Houve um tempo em que as índias Iamuricumás tocavam uma flauta – o jakuí – todos os dias. Embaladas pelo delicioso som do instrumento, elas se divertiam muito, dançando, cantando, enfeitadas com colares, penachos, braçadeiras e com lindas pinturas em seus corpos. Nenhum homem podia vê-las nessas festas. Todas as noites tocavam no tapãim, a casa das flautas, proibida aos homens. Durante o dia, quando havia festa, acontecia ao ar livre e aí os homens tinham que se trancar dentro de casa, pois aquele que visse alguma índia tocando seria duramente castigado por elas.

O Sol e a Lua não sabiam desse arranjo. Um dia visitando a aldeia viram o que acontecia. Não gostaram nada daquilo e resolveram interferir. Combinaram entre eles uma estratégia para mudar aquela situação.
Então um dia, durante uma festa ao ar livre, o Sol apareceu enfeitado de penas e penachos e com um enorme hori-hori (um zunidor) começou a fazer um barulho infernal: as Iamuricumás ficaram apavoradas, não sabiam o que fazer! Então a Lua apareceu e gritou para elas correrem e se esconderem dentro de casa. Foi o que fizeram.

Nessa hora, os homens que tinham sido informados previamente do que o Sol e a Lua iriam fazer, saíram de dentro das casa cheios de alegria e se apropriaram dos jakuis. Depois também aprenderam todos os cantos e as todas as danças das Iamuricumás.
E, daquele dia em diante foi assim que os costumes ficaram – os homens tocam, dançam, se enfeitam e cantam e as mulheres ficam dentro de casa. E o Sol e a Lua disseram: “É assim que está certo!”

Mas… passado um longo tempo em que as coisas corriam assim, aconteceu o seguinte: um dia quase todos os homens da aldeia saíram para pescar num rio que ficava distante da aldeia. E não voltavam. Passou um dia, passou outro e a mulher do chefe da tribo, estranhando, pediu a seu filho que fosse ver qual era a razão de tanta demora. Ele foi até o rio e voltou com a notícia de que os homens estavam lá fazendo uma algazarra imensa e se transformando em porcos e outros bichos do mato.
A mãe ficou furiosa ao saber da novidade: que comportamento era esse, não voltar para casa e se transformar em bichos?? Convocou então todas as outras mulheres da aldeia e contou o que estava acontecendo. Depois de muitas conversas, polêmicas e discussões tomaram uma decisão: iam partir, deixar de vez aquele lugar.

Levaram alguns dias no preparo da viagem, juntando o que iam levar. Chegado o dia da partida todas se enfeitaram com penachos, colares, braçadeiras, se pintaram com urucu e jenipapo como agora só faziam os homens e começaram a cantar. Os poucos homens que não tinham ido à pescaria e ficado na aldeia começaram a criticá-las, a gritar com elas, a xingá-las, mas elas pouco se importaram; continuaram a cantar e se juntaram no centro da aldeia. E passaram veneno no corpo para se transformarem em mamaé (espíritos).
Então vestiram um velho índio com a casca do tatu-açu e mandaram ele ir a frente dizendo: “agora você não é mais gente, é tatu”. E, sem interromper o canto, dançando começaram a se afastar da aldeia seguindo o tatu que ia na frente cavando a terra, mergulhando nela para sair mais à frente, abrindo passagem. E sempre dançando elas caminhavam atrás do tatu.

Passaram onde estavam os maridos pescadores e eles assustados pediram para elas pararem e voltarem para a aldeia. Elas, sem darem ouvidos, continuaram a caminhar, dançando e cantando. E assim foram em frente…e sempre com o tatu abrindo caminho.
E caminhando, cantando e dançando passaram por várias aldeias vizinhas. E sempre que estavam passando por alguma delas, os maridos gritavam com suas mulheres ordenando que sequer olhassem para aquele festivo cortejo, mas muitas delas não obedeciam. Largavam tudo e aderiam ao grupo, também cantando, dançando e indo caminho afora.

E as Iamuricumás e as muitas mulheres que se juntaram a elas seguem viajando até hoje. Caminham dia e noite sem parar, sempre enfeitadas, sempre cantando, sempre dançando. Dizem que não tem o seio direito para melhor manejar o arco-e-flecha com o qual se defendem…

Trechos do livro O LEGADO DAS DEUSAS 2

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