O Feminino e o Sagrado um jeito de olhar o mundo

A menina dos gatos: Monica Jurado

Fiz esses contos com intenção de “traduzir” para a linguagem mitológica alguns aspectos da vida real da mulher entrevistada no nosso livro O feminino e o sagrado: mulheres na jornada do herói.
Então, para esclarecer os que ainda não leram o livro e relembrar a quem leu, antes do conto há um pouco da biografia da pessoa a quem se refere.

Fizemos a entrevista com Monica na linda casa em Pinheiros onde ela trabalha. A entrada ajardinada leva a uma sala cujo piso é um verdadeiro tapete de mosaicos, formando desenhos geométricos com pastilhas brancas, azuis e verdes – afinal, além de xamã, ela é arquiteta…
Divorciada, mãe de uma filha adulta, Mônica teve a coragem, ou a “loucura” (santa loucura?), de entrar praticamente sozinha no mundo do mistério, passando três anos em auto retiro, dedicados exclusivamente a práticas espirituais. Depois, passou outros três anos para sair de seu mergulho e viver novamente no mundo cotidiano.
Apesar de difícil, esse caminho abriu imensos portais para ela mesma e para as pessoas que ela guia e ajuda com o mágico toque de seu tambor, com sua enorme ternura e sensibilidade e, talvez, com algum auxílio de seus inúmeros gatos…
Era uma vez uma menina que não gostava de brincar de casinha.
Ela até que gostava das casinhas; o que detestava eram as paredes que elas tinham, porque paredes bloqueiam as visões do mundo. Essa menina achava que deveríamos ter todas as direções abertas, sem fronteiras nem limites.

Em sua própria vida, ela tentou, de várias maneiras, ultrapassar as barreiras dos espaços sólidos. Brincou de ser atriz no teatro, onde ao menos uma das paredes é aberta. Brincou de ser palhaça no circo, que nem parede tem.
Mas ainda não tinha conseguido a abertura que desejava, até que a abertura veio até ela.

A menina estava dormindo em sua casa branca, quando acordou, de repente, num espaço todo violeta.
Não havia mais paredes: só montanhas e longínquos céus, e tudo era aberto, e tudo era violeta. E ela entendeu que alguma barreira havia caído, abrindo um portal.
Corajosamente, levantou-se da cama, pegou seus gatos, porque é bom ter companhia numa viagem arriscada, cruzou o portal e se foi.

Durante vários anos, a menina caminhou por aquela terra. Cresceu, virando, ao mesmo tempo, mulher e andarilha. E, como toda boa andarilha, manteve os olhos e ouvidos abertos para aprender tudo que podia em sua viagem.

Quanto mais andava, mais portais se abriam, ainda mais para dentro e para baixo, desvendando terras que ás vezes eram de uma beleza intensa, ás vezes de uma tristeza sem fim. Atravessou lugares onde rondavam espectros de hálitos gelados, e florestas de arvores que murmuravam. Era tudo infinito, perigoso, arrebatador. Não havia limites, e os horizontes estavam sempre distantes.
A menina e seus gatos se aqueciam mutuamente para dormir, e algumas vezes eles a salvaram de despencar em abismos. Ela ficou magra, silenciosa, com roupas cada vez mais rotas.

Até que, um dia, ouviu som de tambores.
Seguindo esse som, ela chegou a um espaço circular, onde se realizava uma assembléia de seres vivos e não vivos, todos realizados. Uma bola de cristal pairava sobre o horizonte.
Cruzando o ultimo portal, aquele que rodeava esse circulo, ela pediu:
– Estou aqui, com meu corpo, no aqui e agora. Estou disponível para buscar o que tenho que fazer.
Numa linguagem que não era limitada por palavras, através do tambor e do coração, os seres se comunicaram com ela.
E então a menina começou a fazer o caminho de volta, que foi tão difícil, belo e doloroso quanto tinha sido o de ida.

Quando ela voltou para sua casa branca, trouxe consigo os gatos, o tambor, e a visão das terras que existem além dos limites sólidos das paredes que nos prendem.
Assim, a própria menina aprendeu a ser portal, para que, através dela, as pessoas possam aprender a ser portais para si mesmas.

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